Conta
à lenda que, em um tempo imemorial, o rei Xangô, orixá escolhido por Oxalá
para governar a terra e os outros deuses, tinha diversas esposas. As duas
mais importantes eram Yansã, a Senhora das Tempestades, e Oxum, cujo domínio
se estendia pelos rios, lagos e cachoeiras.Certo
dia, enciumada da preferência de Xangô pela sua adversária; Yansã decidiu
vingar-se de Oxum e, em um raio intempestivo de cólera, investiu contra a mãe
das águas doces, quando esta se banhava nua às margens de um grande lago,
tendo apenas um espelho entre as mãos. Devido ao fato de não ser uma
guerreira, mas uma mulher dócil e vaidosa, afeita apenas aos expedientes da
Sedução e da Dissimulação para se defender; Oxum viu-se completamente
indefesa frente à ira arrebatadora da Rainha dos Raios. Oxum, então, rezou a
Oxalá e, em um instante mágico, percebeu que o Sol brilhava forte nas costas
de sua agressora. Rapidamente, ela utilizou seu espelho para refletir os
raios solares de forma a cegar Yansã. Ao
saber da vitória de Oxum, o rei Xangô reafirmou sua preferência pela Senhora
das Águas, que além de mais bela e delicada, provou ser também mais poderosa
que a Senhora das Tempestades.
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Um Objeto Singular
O espelho
aparece em inúmeros mitos e ‘reflete’ um sentido claramente universal porque
tem um valor cognitivo e epistemológico. Ele é um símbolo da
consciência. Consciência entendida não apenas como ‘auto-imagem social ou
profissional’, mas, sobretudo como identidade psíquica profunda, a verdadeira
face sob as máscara do ego, a centelha luminosa, o reflexo interior do Fiat
Lux. Platão e Plotino o comparavam à alma, metáfora que em seguida foi
adotada por Santo Atanásio e Gregório Niseno. Mas é com São Paulo que o Espelho
se torna um valioso símbolo de transformação, um duplo instrumento
para o conhecimento antropomórfico de Deus e para o conhecimento cosmológico do
Homem.
"E
nós todos que, com a face descoberta, refletimos como em um espelho a glória
do Senhor, somos transfigurados nessa mesma imagem, cada vez mais
resplandecente, pela ação do Senhor, que é o Espírito. (...) Agora vemos em
espelho e de maneira confusa, mas, depois, veremos face a face. Agora o meu
conhecimento é limitado, mas, depois, conhecerei como sou conhecido.”
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Mas
se o Espelho é símbolo do auto-conhecimento místico, da imagem e semelhança
onde o Homem e Deus se refletem, ele também aparece constantemente como
metáfora da ilusão narcísica, como confidente da beleza egóica, como um reflexo
invertido da realidade. O símbolo da verdade é, ao mesmo tempo, signo da
falsidade e da ilusão. E certamente foi este caráter paradoxal e contraditório
que criou ‘O fascínio dos Espelhos’.
Das
inúmeras narrativas onde este fascínio se manifesta escolhemos o mito nagô do
Espelho de Oxum, originariamente recolhida por Pierre Verger na África,
pois ele apresenta vários elementos simbólicos importantes para caracterizar ofuncionamento
arquetípico dos mitos que constituem o dispositivo especular e sua
estratégia epistemológica. Antes, porém, de analisar os diversos aspectos
simbólicos desta lenda mítica, vamos estudar como o tema do espelho se
manifesta em outras narrativas de diferentes culturas, procurando identificar
suas relações com um arquétipo único, que possa esclarecer o papel universal
que o Espelho desempenha na lenda nagô.
Pelo fato
de não emanarem luz própria, mas de refleti-la, os espelhos foram associados à
Lua durante toda Antiguidade. Desta associação chave, sobrepuseram-se as que
relacionam o Espelho ao feminino e à sua beleza. O simbolismo lunar do Espelho,
no entanto, não se limita às mulheres e aos poetas que lhes cantam a beleza,
mas encontra lugar também entre os feiticeiros e mágicos, que utilizavam as
superfícies espelhadas para entrar em transe, como é o caso dos xamãs
siberianos.
Possivelmente,
a tradição de utilização mágica do espelho tenha tido sua origem no fato de ele
ter sido usado na astronomia/astrologia para determinar o movimento
das estrelas no céu. Não é sem motivo que o verbo especular,
operação mental, procede do latim especulum, que originariamente
significava observar o céu, admirar e estudar suas
constelações. Como os estudiosos da ciência dos astros desta época,
invariavelmente, eram também magos, os espelhos foram, gradativamente,
interiorizados. ”De modo que” - comenta o cabalista Mario Satz - “o espelho
não somente está fora de nós, como um artifício metálico, disco polido
entrevisto no toucador ou no harém, mas se encontra também entre os hemisférios
cerebrais, que invertem o contemplado transladando o esquerdo ao direito e
vice-versa.” É curioso observar que este duplo processo de representação da
realidade através de espelhos se desenvolveu paralelamente em diversas culturas
antigas - na China, na Índia, no Oriente Médio e no Mediterrâneo
- gerando diferentes mitologias astrológicas, mas uma única
concepção universal de representação.
A
contemplação deste ‘espelho interior’ é particularmente rica entre os místicos
sufis, que o entendem em um sentido semelhante ao de São Paulo, como a imagem
de Deus e do Homem. “Deus é, pois” - escreveu Ibn Árabi de Múrcia - “o
espelho no qual tu mesmo te vês; do mesmo modo que tú és seu espelho em que Ele
contempla seus nomes”. Outro místico sufi, Shabistari, é ainda mais específico
em seu Jardim do Mistério
“O
não-ser é um espelho, o mundo uma imagem, o homem é o olho dessa imagem, e
Ele a luz do olho. Quem alguma vez viu o olho através do qual todas as coisas
são vistas? O mundo se tornou homem, e o homem, mundo; não há explicação mais
clara que essa. Quando olhas atentamente no coração da matéria, Ele é ao
mesmo tempo a visão, o olho, a coisa olhada. A Santa Tradição nos legou isto,
e sem olho nem ouvido o demonstrou”.
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Também o Zohar, recomenda
que, para que o homem possa conhecer a Glória, utilize-se de um espelho,
observando-a indiretamente para não ser cego por sua luminosidade
resplandecente. Ou seja, o tema do Espelho é uma unanimidade entre os místicos,
sejam judeus, cristãos ou mulçumanos. Este curioso consenso talvez
explique a crença, também universal, de que quebrar um espelho acarreta em um
longo período de azar ou má-sorte. Também a crença de que as ‘criaturas sem
alma sob a forma humana’, como os vampiros e os zumbis, não têm suas imagens
refletidas no Espelho; deve ter sua origem na associação universal dos espelhos
à imagem holográfica de Deus no Homem, feita em diversas épocas por diferentes
religiões.
Adiante,
quando analisarmos a lenda de Oxum, veremos como, devido a sua associação
universal com a Lua, o Espelho guarda uma relação direta com o simbolismo
aquático, mas dele se diferencia por refletir a luz do fogo elementar. Agora, o
importante é que se entenda que quando se fala do simbolismo do Espelho não se
trata apenas da mitológica ilusão de Narciso ou ainda da fútil vaidade
feminina, mas também da contemplação mística à luz de um limbo transcendente.
Mas se o
Espelho serve para que as donzelas e cortesãs reforcem seus egos e para que os
sábios místicos se desvencilhem dos seus, ele também é uma poderosa arma de
guerra, utilizada para atear fogo gerar à distância através de raios luminosos,
como no célebre episódio atribuído a Arquimedes de Siracusa, que com um
gigantesco espelho catóptrico incendiava os navios que tentavam invadir a
antiga ilha da Sicília.
De todas
as lendas envolvendo espelhos como arma a mais conhecida é, sem sombra de
dúvida, a luta de Kadmo contra a Medusa, narrada por Platão no Timeu
. Nesta narrativa, o herói vence a terrível górgona, cuja o olhar tem
o poder de transformar seus oponentes em pedra, com a ajuda de um espelho preso
ao seu escudo. Kadmo fez com que a Medusa visualizasse sua própria imagem
refletida no espelho e tivesse o mesmo destino de suas vítimas, petrificando-se
para sempre. Ou seja, o espelho é uma arma capaz de fazer com que o outro se
reconheça, com que o adversário tome consciência de si e de suas projeções. O
mal reconhecendo a si mesmo como tal, perde toda a sua eficácia e sucumbe a sua
própria consciência.
Talvez
por isso, em seu livro De Natura Deorum, Cícero lembra que o
Espelho é uma invenção de Esculápio, o deus da medicina; e os antigos
sacerdotes nahuas do México costumavam levar um espelho pendurado no peito para
que os “demais (homens) descobrissem seu verdadeiro rosto e ser
corrigissem”. Pena que este expediente simbólico não tenha funcionado com os
conquistadores espanhóis. Estes, aliás, realizaram boa parte da conquista das
Américas a custa da sedução de miçangas e dos espelhos, presenteando-os aos
indígenas, para que enquanto eles se distraíssem com seus reflexos, não
percebessem o que se tramava às suas costas. Caberia ainda lembrar que a
sobreposição de temas aparentemente contrários fez do Símbolo do Espelho uma
metáfora do paradigma epistemológico pré-científico e, posteriormente, devido a
sua reflexibilidade passiva frente ao pensamento consciente, o Espelho passou a
ser comparado com o próprio inconsciente - como detalhamos a seguir sobre as
relações do dispositivo especular com as ciências humanas.
A Porta do Inconsciente.
‘Espelho,
espelho meu, existe algum intelectual mais sabido do que eu?’ Num primeiro
nível, a reflexão sobre o espelho sempre será um questionamento do ego sobre si
mesmo. Mas o espelho nunca responde, ou melhor, nunca discorda, ao contrário,
seu silêncio eternamente cúmplice se faz íntimo das mais desmesuradas
comparações.
Entretanto,
é este primeiro momento de reflexão, embora sempre reafirme a identidade, que
revela a objetividade do subjetivo, pois permite que o observador se observe,
imaginando como será visto pelos outros. E desta reflexão primeira da
consciênca é que (re)surgem as grandes idéias e os grandes empreendimentos.
“Realidade ou alucinação, os mundos ordenados com estes instrumentos de
precisão revelam a reversibilidade de todas as coisas: a certeza do aparente, a
incerteza do existente.” Aqui o Espelho é comparada a um grande lago de
águas límpidas e cristalinas, como um campo projetivo da experiência humana,
onde o homem pensa e repensa sua identidade.
Rompendo
com esta primeira perspectiva estética, o tema de entrar através do Espelho em
um mundo imaginário, presente, por exemplo, em Alice de Lewis Carroll,
tornou-se lugar comum na atualidade, principalmente em Vídeo-Clips de bandas de
rock e filmes de ficção cientifíca. Interessante é observar que este ‘mergulho
no inconsciente’ sempre parece demarcar os limites a realidade virtual e a vida
cotidiana, para a qual o protagonista sempre volta ao final da narrativa. É uma
fuga do ego para fantasia e seu invariável retorno. Em muitos casos, o tema do
espelho se confunde com o símbolo do Sósia, do Outro, do Duplo. (8)
É como se contemplar no
espelho:
A forma e o reflexo se
observam.
Tu não és o reflexo,
Mas, o reflexo és tú.
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O
reflexo, no entanto, não é apenas uma sombra: em algumas narrativas, o duplo se
rebela contra sua matriz; em outras, o Sósia se liberta de uma dimensão
paralela existente através do Espelho. Em todas podemos observar a idéia de
porta dimensional e em boa parte a idéia da imagem refletida, do duplo como um
veículo do Eu para viagens imaginárias, um ‘corpo astral ou sonhador’. Mesmo
nas estórias onde o Sósia se rebela contra o protagonista e adquire vontade
própria, existe esta relação, pois o Outro se revolta contra sua função
original que é a de representar a forma no mundo dos reflexos, de duplicar o
ego em uma imagem que possibilita o autoconhecimento. Porém, os espelhos
guardam ainda um sentido mais profundo.
Entre os
tibetanos, a Sabedoria do Grande Espelho ensina o segredo
supremo: que o mundo das formas que ali se reflete não é mais que um aspecto
do sunyata, da vacuidade. Patanjali (9) chamou esse conhecimento de
‘fluxo imóvel’ e não são raros relatos semelhantes dos místicos de diferentes
tradições. Para eles, o Espelho é símbolo da transcendência temporal,
da a-historicidade, da superação da continuidade da percepção sensorial pelos
lampejos da eternidade.
Poderíamos,
então, concluir que os mitos do Espelho simbolizam a própria representação, não
se constituindo ou representando um único arquétipo, mas a própria noção de
‘inconsciente coletivo’ ou de unidade fundamental da experiência simbólica.
Representando a própria representação, os espelhos são símbolos da realidade
simbólica, são, assim, imagem paradigmática ou um dispositivo
complexo, cuja a ambivalência expressa sempre um paradoxo: verdade
absoluta e ilusão passageira, beleza superficial e profunda sabedoria, arma e
remédio, alienação social e reintegração psíquica, etc.
Mas se
vemos no Espelho este emblema de alma coletiva, ou pelo menos, se encontramos
nele um símbolo da cultura ou a metáfora mais abstrata e paradigmática da
linguagem, podemos comparar seus reflexos sintagmáticos aos arquétipos, pois
enquanto o dispositivo especular enfatiza a diferença, seus
espectros sempre reafirmam a identidade simbólica. Em si, os
reflexos nunca são ambivalentes, eles são apenas imagens duplicadas. Já
o Espelho não é uma simples estrutura duplicadora porque contextualiza e até
transforma a realidade, uma vez que remete o observador a uma contemplação do
conjunto da representação.
Enquanto
os reflexos nos encantam e nos enganam como identidades arquetípicas, o Espelho
representa a consciência de que essas identidades são passageiras e parciais. O
Espelho é um convite à eternidade, como, aliás, sugerem as muitas lendas que o
associam à longitividade e à manutenção da beleza por meios sobrenaturais, das
quais O Retrato de Dorian Gray é certamente a mais
conhecida.
Muito
ainda poderia ser dito sobre os espelhos e sua vastíssima simbologia, porém já
reunimos os elementos necessários a análise da lenda nagô a que nos propomos
inicialmente. Voltemos agora, portanto, ao mito do Espelho de Oxum.
No Universo dos deuses nagôs
A
narrativa começa dizendo que Oxalá, ‘em um tempo imemoriável’, delegara o
governo da terra e dos deuses a Xangô, se comportando como um ‘deus oticius’ ou
uraniano, que cria o mundo e o entrega à administração de um de seus filhos,
deuses menores. Por uma feliz coincidência, este conceito de ‘Deus-pai’
existente ‘para além dos céus’ foi estabelecido por Mircea Eliade justamente estudando a cultura Iorubá, onde Olorum se retira entregando todo
poder a Obatalá.
O início
da narrativa expressa, portanto, um duplicação do mito cosmológico. Trata-se de
um ‘tempo imemorial’, mas não de um tempo ‘primordial’. Poderiamos, fazendo uma
analogia grosseira entre as mitologias grega e nagô, dizer que se Olorum
corresponde a Urano, Obatalá/Oxalá, apesar de seu papel eminentemente solar na
lenda analisada, seria a versão africana de Cronos/Saturno, e ainda que Xangô,
terceira geração divina a ocupar o poder, corresponderia a Zeus/Júpiter.
Aliás,
como já falamos de passagem, não são poucos e pequenos os elementos simbólicos
comuns entre Xangô e o rei dos deuses gregos e romanos, pois ambos têm machados
sagrados, lançam raios do alto de suas montanhas, representam o arquétipo da
Justiça e, sobretudo, têm múltiplas relações amorosas hierogâmicas com diversas
deusas que representam diferentes aspectos da Natureza, sempre feminina.
Em nossa
estória, temos uma luta, não entre duas mulheres, mas entre dois destes
aspectos femininos da natureza: Yansã, Rainha dos Raios, dos Ventos e das
Tempestades, senhora dos eguns e do mundo dos mortos; e Oxum, Mãe das Águas
Doces e senhora do jogo de adivinhação do Ifá. Oxum também é uma deusa do amor
e da beleza, uma ‘Afrodite nagô’.
Os
temperamentos das deusas são bastante opostos. Oxum exemplifica a mulher
aparentemente submissa e dócil, mas, na verdade, sedutora e dissimulada. Yansã,
ao contrário, encarna o ideal de uma mulher independente e sincera, mas de
gênio irascível. É também a orixá feminina que tem mais relacionamentos amorosos
com outros deuses, característica que, no entanto, não a fez menos ciumenta e
possessiva. A Senhora das Águas nada podia contra a força dos ventos. Oxum não
poderia se valer de suas armas habituais, a sedução e a mentira, mas
para invocar o poder solar de Oxalá (o self), ela teve
que transcender sua condição narcista e reflexiva. A superação desta
vaidade inicial do espelho é que permite a Oxum usá-lo como uma arma real e não
como um ‘instrumento psicanalítico’ feito o herói Kadmo diante da medusa. E este
é um ponto chave desta lenda: apenas com a ajuda do elemento Fogo, a Mãe das
Águas se torna também a Senhora do Espelho e vence Yansã. E assim conquista
definitivamente a preferência de Xangô.
Pode-se
também pensar o embate das duas deusas como uma luta entre um feminista
militante contra uma dondoca. Mas essa forma de pôr as coisas não nos ajudará a
entender o desfecho da lenda senão como uma advertência moralista de que o
comportamento feminino mais adequado seja o da submissão dissimulada e não o da
liberdade, autonomia e igualdade frente ao masculino. Entretanto, esta leitura
é equivocada.
A
mitologia nagô é amoral e não está preocupada em ditar modelos morais de
comportamento. Na verdade, a vitória de Oxum tem dois significados para os
Iorubás: representa, primeiro, do ponto de vista da agricultura, a preferência
pelas chuvas moderadas atribuídas a Oxum como Orixá da Fertilidade do que pelas
tempestades simbolizadas pelo casamento de Xangô com Yansã. E, no plano
religioso, a vitória de Oxum representa a superioridade da atividade
divinatória simbolizada pelo espelho (inconsciente coletivo) sobre a
necromancia e o culto aos antepassados, representado pelo aspecto ctônico e
intempestivo da Rainha dos Raios.
Mas esta
tendência ocidental em ver uma espécie de ‘Eva’ em Oxum e uma ‘Lilith’ em Yansã
tem uma razão de ser. Deixemos por hora esta questão e voltemos mais um vez ao
tema do espelho, procurando agora observar como a lenda de Oxum é decisiva para
sua compreensão.
A Caverna de Platão
De todas
alegorias ou metáforas envolvendo o tema do espelho, a de maior significação
epistemológica certamente é a da imagem paradigmática da Caverna descrita por
Platão (11):
Acorrentados
de costas para a luz em um cárcere subterrâneo, os prisioneiros só podem ver,
dos homens, animais e figuras que passam pelo exterior, as sombras projetadas
no fundo da Caverna. Quando um dos prisioneiros se liberta e retorna ao mundo
exterior, é cego pela luminosidade do Sol e só aos poucos consegue se adaptar
à nova realidade. Percebe, então, que o mundo no qual vivia era irreal e
inconsciente, feita de sombras e reflexos das coisas. Porém, o prisioneiro
correria sério risco de vida se, retornando ao interior da caverna,
procurasse revelar aos seus antigos companheiros a irrealidade do mundo em
que se encontram. Provavelmente, eles o matariam.
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Nesta
imagem genial, Platão não apenas resumiu sua concepção sobre a realidade e a
linguagem, mas também nos trasmitiu sua experiência pessoal, mais precisamente,
sua explicação filosófica para o trágico destino de seu mestre, Sócrates,
forçado a beber veneno pelas autoridades atenienses em virtude de sua defesa
intransigente de uma visão mais objetiva da realidade. E não foi o único.
Giordano Bruno geralmente costuma encabeçar a longa lista dos mártires da
ciência e do pensamento objetivo vitimados pela ignorância dos homens
escravizados pelas representações subjetivas da realidade.
Entretanto,
o desenvolvimento do pensamento científico não foi, como nos faz pensar o
senso-comum, um gradual acumular de informações, mas, ao contrário, uma série
de reviravoltas metodológicas, com sucessivas trocas de modelo. O próprio
conceito de paradigma - ‘conjunto de estruturas cognitivas e epistemológicas’ -
surgiu de uma longa discussão metodológica em torno das revoluções científicas
(12).
Hoje, no
entanto, vivemos um momento em que a racionalidade científica e sua visão
objetiva do universo destroçaram a maioria das ilusões ideológicas das
representações subjetivas. Poderíamos dizer, utilizando a imagem de Platão, que
todos os homens se libertaram da caverna e do seu espelho, e que agora
desprezam as imagens fantasmagóricas a que estavam acostumados no cativeiro.
Neste novo contexto, as sombras tornaram-se símbolos do inconsciente - a que os
‘homens racionais’ negam, mas que voltam em seus sonhos e nas reflexões involuntárias
de sua imaginação. Movidos pelo auto-conhecimento, os homens que atualmente
decidem ‘voltar à caverna e ao seu velho espelho’ são considerados
loucos ou excêntricos. Não se trata mais de conhecer a objetividade,
mas de observar o desenvolvimento da consciência inter-subjetiva, de entender
sua linguagem.
Assim,
por exemplo, no paradigma científico da astronomia, sabemos que a Terra gira em
torno do Sol; no entanto, continuamos dependendo simbolicamente do paradigma
subjetivo da astrologia, que como uma linguagem do inconsciente, condiciona
atitudes e comportamentos. Aliás, ao contrário do que pensam os historiadores
da ciência, o sistema geocêntrico não significa que Ptolomeu acreditasse que o
Sol girasse em torno da Terra, mas sim que ele colocava a questão da
representação objetiva do universo em um segundo plano diante da idéia de
decifração do destino através da observação especular das estrelas.
A tarefa
metodológica que nos é contemporânea é estabelecer um terceiro paradigma de representação
que concilie a objetividade científica com a função simbólica da linguagem
desenvolvida pelo hemisfério esquerdo do celebro, que integre nosso
conhecimento astronômico em uma nova simbologia astrológica, que relacione o
espelho no fundo da caverna ao sol e ao mundo exterior.
Os
ocultistas modernos estudiosos da Cabala hebraica (13) têm uma curiosa teoria a
respeito de Deus, do Homem e da Mulher. Para eles, o fato do Homem ser a imagem
e semelhança de Deus implica em que ambos jamais possam se ver frente a frente.
Mas a mulher, devido ao fato de ter seu sistema neurológico invertido em
relação ao masculino destro, pode ver Deus face a face. De acordo com este
preceito, os homens nos rituais de magia e cerimônias religiosas deveriam se
manter sempre de costas para o altar e de frente para participantes femininas -
o que de fato acontece em diversas religiões.
Nesta
proposição, enquanto o Homem é a imagem e semelhança de Deus, a Mulher é seu
inverso simétrico, seu espelho. Assim, o Homem só pode ver a Deus através da
mulher e Deus necessita dela para dar luz ao seu filho. Esta posição de
‘reflexo primordial’, de mediação entre o Criador e a criatura também tem um
caráter universal entre as diversas deusas que representam a grande mãe cósmica.
Assim, se ‘o universo é um sonho de Brahma’, se ‘o mundo foi criado para que
Deus se reflita nele e conheça a Si próprio’, este espelho, segundo momento
cosmogômico de muitas mitologias é sempre um elemento ‘feminino’.
Neste
sentido geral e estritamente simbólico é que podemos associar Oxum à Eva e ao
arquétipo feminino genuíno, enquanto Yansã, de costas para o sol,
corresponderia ao arquétipo do feminino masculinizado. O significado central da
narrativa está no fato de Oxum, devido à situação de perigo iminente,
transcender a sua condição de mulher-objeto e se associar ao Sol, de abandonar
o uso reflexivo tradicional de seu espelho e utilizá-lo de uma forma tecnológica,
racional, solar; como uma arma laser. A lenda, desta
maneira, representa a união cognitiva entre os hemisférios celebrais e a
integração epistemológica dos paradigmas.
No Espelho,
encontramos a interseção de duas formas de viver e de pensar o tempo: o
transcorrer gradativo dos acontecimentos registrados pela memória e o eterno
presente do mundo virtualizado das idéias. Ou, como dizia Santo Agostinho, “a
memória das coisas dos homens e a memória das coisas de Deus”.
ESPELHO OBJETO
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ESPELHO SÍMBOLO
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Tempo Linear e contínuo
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Tempo Circular e simultâneo
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Passado + presente =
História
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Presente + futuro = Virtual
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Signo = consciência social
(Durkheim) + inconsciente individual (Freud)
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Símbolo = inconsciente
coletivo (Jung) + consciência individual (Hegel)
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Chegamos ao final. Resta apenas a
lembrança àqueles que não se reconheceram neste texto, que por mais que
procurem um outro duplo com o qual se identifiquem, sempre encontrarão o
sentimento de incompletude tão próprios dos espelhos e da instantaneidade dos
seus múltiplos reflexos - dada à vastidão e à complexidade deste tema
permanente. Ou eterno?