É provável que todos já tenham ouvido a expressão: "O
Brasil é um grande caldeirão". Talvez não tenhamos o mesmo requinte da
culinária francesa, bastante tradicional, nem da japonesa, adaptada às suas
condições regionais, mas no nosso "caldeirão" cabe uma grande
feijoada, onde diversos elementos se misturam, ganhando um sabor especial - a
digestão (entenda-se compreensão) desse prato pode ser um pouco pesada às
vezes, mas certamente é apaixonante e paradoxalmente original ao mesmo tempo em
que é universalista.
No Brasil as coisas misturam-se tanto, que é possível
estudar a culinária, a formação étnica e cultural, ao mesmo tempo em que
tentamos entender a sua religiosidade. É um país onde as mais diversas
denominações religiosas - desde a católica até a judaica - convivem numa paz
quase absoluta. E curiosamente, a população, das mais variadas religiões
existentes aqui acabam convergindo para um ponto: as crenças populares.
Benzedeiras, mandingas, simpatias e patuás confundem-se com outras liturgias,
que acabam recebendo o questionável rótulo de “autênticas” que a tradição
histórica lhes permite. Pesquisas da Vox Populi mostram que 59% da população
brasileira declara que acredita em reencarnação e que já viveu outras vidas,
mas apenas 3% dessa mesma população se diz espírita.
Paradoxo? Provavelmente não. Mais possivelmente trata-se de
um traço cultural, fruto da miscigenação construída ao logo dos séculos. No
entanto, tal constatação nos remete a outro questionamento. Esse espiritismo
praticado no Brasil é realmente “puro” (no sentido de seguir de maneira
ortodoxa a obra codificada por Kardec) ou apresenta também, em si, traços dessa
nossa identidade cultural?
Não é novidade para ninguém que o espiritismo nasceu na
França, onde possuía um caráter mais científico e filosófico do que religioso,
mas hoje, ele é mais difundido aqui no Brasil do que em seu país de origem
(sim, pesquisas mostram também que Alan Kardec é mais conhecido no Brasil do
que no seu país de origem, e acredito que isso seja motivo de orgulho para
nós). Mas por que então o espiritismo encontrou as portas abertas justamente no
Brasil? Provavelmente o Brasil já possuía uma predisposição para as crenças
reencarnacionistas (e espiritualistas em geral), já que uma gama dessa cultura
foi trazida pelos negros que aqui aportaram como escravos. Encontramos então um
ponto convergente aí. Certas ritualísticas, práticas como benzimentos,
simpatias e similares, já tinham um campo no Brasil, o espiritismo veio então
somar conhecimentos a uma cultura já bastante vasta e eclética. Isso significa
que houve uma deturpação do espiritismo? Longe disso. O que houve foi um
processo natural de adaptação cultural, que não somente as religiões, mas todos
os hábitos, costumes, crenças, linguagem – cultura de um modo geral – passam
dentro da construção de uma nova identidade sócio-cultural (lembremos que o
Brasil ainda era jovem como país independente e mais ainda como República,
portanto ainda estava “se conhecendo” como nação, e o positivismo – berço
filosófico do espiritismo – era a palavra de ordem). Percebe-se então outro
fenômeno que também ocorreu naturalmente: a universalização.
Hoje as coisas misturam-se nesse grande caldeirão. É muito
comum seguidores da Umbanda definirem-se como espíritas. Trata-se de um erro
conceitual? Cada qual terá a sua resposta e a partir dela saberá dizer se é ou
não um erro, mas como mais uma manifestação dessa miscigenação, muitos
insistirão naquela que melhor lhe aprouver e esse não é o tema da discussão. O
que importa é a influência entre (e não sobre) o espiritismo e os cultos
populares que já eram difundidos no Brasil. No início do século XX era muito
comum se falar em “macumbas”, especialmente no Rio de Janeiro. Esses rituais
que muitas vezes consistiam em oferendas entregues ao ar livre, já eram um
protótipo do que viria a ser o que hoje chamamos de Umbanda. Paralelamente a
isso, em 1908, dentro de uma casa espírita, manifestou-se o Caboclo das Sete Encruzilhadas,
que oficializou a Umbanda (se ele “fundou” a Umbanda já é tema para outro
debate).
Podemos encontrar mais uma constatação da existência desse
caldeirão em um trecho do livro AFRICANISMO E ESPIRITISMO, de Deolindo Amorin
em que ele diz que a Umbanda é muito mais parecida com o catolicismo do que com
o Espiritismo, devido aos rituais, que segundo ele, não existem no Espiritismo.
Percebe-se nas palavras do autor a tentativa clara de afastar a prática da
Umbanda da Doutrina Espírita, mas é importante ler esse trecho sem emitir juízo
de valores principalmente sobre nossos amigos espíritas, que são merecedores de
todo nosso respeito. Deixemos os preconceitos de lado, fazendo uma análise onde
se leva em conta o momento histórico no qual o documento foi escrito e a
mentalidade da época – em especial da classe social e intelectual em que se
encontra o autor, caso contrário toda forma de tentativa de estudo irá por água
abaixo:
"Quando falamos em Espiritismo, saibam os leitores que
nos referimos à codificação CIENTÍFICA, FILOSÓFICA e MORAL, de Allan Kardec, -
a única com o privilégio de ostentar semelhante título! – que o mestre expôs
numa série de obras notáveis, editoradas na França, no período de 1857 a 1869,
e não a esse conglomerado de pajelanças e de rituais espalhafatosos, onde
preponderam o mediunismo abastardado; em suma – ao carnaval de UMBANDA,
difundido e praticado por aí em fora, sob o rótulo daquela luminosa
esquematização espiritualista." (AMORIM, 1949: 5-7).
É fundamental ressaltar que esse trecho reflete a opinião de
UM AUTOR EM ESPECIAL e jamais de toda a comunidade espírita. Mas percebe-se
claramente que há uma tentativa de não identificar o Espiritismo com a Umbanda,
e sim com o catolicismo (assim como os católicos se esforçam para identificar a
Umbanda com o espiritismo – haja caldeirão). Por outro lado, não podemos
esquecer a influência dos cultos indígenas, que foram preservados
principalmente em algumas partes das regiões Norte e Nordeste do Brasil e que
acabaram incorporados aos rituais de Umbanda e à própria identidade nacional (o
uso terapêutico e magístico de ervas é o exemplo mais clássico da existência
dessa tradição). Embora menos falados, não há como desprezar também o Catimbó,
o Xangô (não o orixá, mas o culto) de Pernambuco, o Batuque do Sul – e isso
porque nem citei o Candomblé e sua gigantesca influência. Somos então uma nação
caldeirão, ou, para ser mais modernos, um liquidificador, onde ritos, crenças e
filosofias se uniram e se misturaram, formando, no imaginário coletivo, uma
unidade, que na teoria não existe, mas é praticada constantemente (quem nunca
viu um católico procurando uma benzedeira?).
Na verdade esse é um texto que mais confunde do que explica
– e essa é a intenção, pois da dúvida pode nascer um bom debate – mas construir
a nossa própria história (nesse caso, em especial da Umbanda) é entender um
pouco de si mesmo, de seu povo, de sua nação e formação. É um trabalho árduo,
para o qual eu talvez não tenha competência e preparo, mas creio ser importante
lançar uma primeira semente para uma troca de idéias amigável, onde cada qual
pode contribuir com a informação que possui, concordando, discordando,
acrescentando e corrigindo.
Saravá a Umbanda.
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