Psicografia de um espírito que foi escravo em vida e depois se tornou guia de Umbanda.
Rio de Janeiro, 5 de abril de 2006.
Fui mais do que uma escrava, menos do que gente na época em que vivi. Quando nasci, meus pais me batizaram de Catarina, para agradar o homem branco que era devoto dos santos. Tinham medo de apanhar e, como todo mundo, queriam cair nas boas graças de seus senhores.
Desde menina, fui educada na fé do meu povo e na da Igreja, e convivi com duas crenças que se diziam distintas, mas que, para mim, falavam a mesma coisa. Eu não entendia por que os padres recriminavam tanto as nossas práticas e não compreendia a aversão dos meus aos cultos católicos. Para mim, tudo era bonito e puro, os santos e os orixás tinham igual força e poder, eram bons e nos ajudavam em todos os perigos. Que diferença fazia o nome que se dava a cada um?
No começo, tentei indagar o porquê daquela intolerância, mas os de meu povo me recriminaram e passaram a me evitar, e os da Igreja me bateram e castigaram. Meus pais me olhavam com olhos tristes, e eu resolvi silenciar. Podia aproveitar o melhor de cada crença no silêncio do meu coração.
E foi como eu fiz. Quando cantava e dançava com os do meu povo, me entregava de corpo e alma aos orixás e me deixava possuir (era assim que nós chamávamos a incorporação). Quando a sinhá me obrigava a ir à Igreja, ficava admirando a beleza dos santos e o olhar puro e doce de Jesus. Foi assim que minha fé em Jesus começou a crescer.
Eu era cria da casa, servia na casa-grande como copeira e arrumadeira, dentre outras coisas, e ainda servia de distração para os filhos do patrão. Aos poucos, fui me acostumando com aquela gente e percebi que não havia neles a maldade que os de meu povo diziam. Eles eram apenas pessoas presas a suas crenças e aos seus códigos, assim como nós estávamos presos ao medo e ao sofrimento.
Não éramos muito diferentes. Todos nós estávamos presos aos grilhões das nossas consciências, por medo, intolerância, orgulho. Fomos injustiçados pelos brancos, mas os brancos nos prenderam porque uma força muito maior e mais poderosa do que nós assim o quis: estávamos todos atados às teias do destino que Deus mandou para nós. Então, cadê a injustiça? Onde está a maldade do homem que só agiu para fazer cumprir os desígnios de um povo que precisava se burilar?
Muitos brancos padeceram pela culpa e o remorso, muitos negros avançaram nos séculos envenenados pelo ódio e o desejo de vingança. Mas cada um, à sua maneira, deu a sua contribuição à vida. Não digo que o que nos fizeram foi bem-feito, mas também não me sinto vítima da crueldade alheia. Um erro não justifica o outro, mas se o erro existe, e é parte da conduta humana, por que não engatar nele a vida e aproveitar a chance que ele dá de aprender e crescer?
Errar não é feio nem vergonhoso. Também não é pecado nem traição, nem tem o peso que alguns querem dar. Errar é simplesmente uma conseqüência do ser humano, e
só não erra quem nasce Deus. Então, se ninguém nasce Deus, todo mundo erra (com licença do Leonel, porque foi ele quem disse isso primeiro do que eu).
Bem se vê que eu aprendi muito com meus erros. Era orgulhosa, mesquinha e arrogante, e foi só quando desencarnei e me vi na treva, acusada e torturada por aqueles a quem tinha prejudicado, que percebi o quanto havia mesmo errado, sem vergonha ou medo de dizer. Pedi ajuda a Deus, e Ele me enviou alguém que eu havia prejudicado também. Chorei de vergonha e arrependimento, mas compreendi que a bondade humana não tem limites, porque Deus não tem limites e não ia criar criaturas limitadas.
Na minha ignorância espiritual, quis aprender e reencarnei no seio da escravidão. Não vale a pena falar dos castigos e humilhações que eu sofri, porque isso, todo mundo já sabe. Prefiro falar das lições que aprendi. A humildade que vivi nos meus quase 90 anos foi algo que jamais pude compreender em séculos de encarnações perdidas na ilusão do prazer e do ócio. Também aprendi o valor do amor, porque vi muitos de meu povo partirem para o desterro ou a morte no tronco, e eu chorei por cada um deles como a mãe chora a perda de seu filho.
Mas quando o filho do sinhô caiu doente, fui eu que mostrei a ele o caminho da cura, sem ervas nem poções milagrosas, só com a força da minha fé. Eu era escrava de dentro e presenciei o sofrimento daquele barão grosseiro e arrogante, vendo o filho jogado no leito gemendo de dor e delirando de febre. Naquele momento, meu coração se compadeceu, e eu me esqueci das maldades que ele nos fazia, ajoelhei ao lado dele e fiz a minha oração. Não usei ervas nem poções, mas ajudei o menino a se curar com a minha fé. Dentro de mim, eu já reconhecia o valor da piedade e consegui compreender o sofrimento daquele homem, e sofri junto com ele, assim como me alegrei quando o menino se levantou e voltou a brincar.
Compreendi também o que é a ingratidão, porque quando o pequeno se curou da febre, o sinhô me mandou de volta aos meus afazeres sem qualquer sinal de gratidão ou reconhecimento. Não me entristeci, porque a alegria de ver uma criança voltar a sorrir foi muito maior do que a pequenez de uma ingratidão. Mas meu espírito compreendeu como pode ser dolorosa a ingratidão, como eu já havia feito tantas e tantas vezes com aqueles que um dia também me ajudara.
Não vale a pena ficar aqui falando do passado, porque ele é longo e cansativo, mas o que importa é a semente que ele deixou para o futuro. De tudo o que vivi, o que mais me comoveu, e comove até hoje, é a fé que adquiri em Jesus. Lembro-me de uma vez, há muitos anos, em que um homem foi apresentado ao povo, e eu, cega e ignorante, gritei com a turba para que libertassem Barrabás. Eu era apenas uma mulher fútil e tola, e só depois foi que percebi que havia escolhido a crucificação de um rei. Não o rei dos judeus ou dos cristãos, mas o rei do amor.
Levei alguns séculos para aprender, mas consegui, finalmente. Na época da escravidão, Jesus se tornou, para mim, o pai das minhas dores e o condutor do meu destino, e eu me entreguei nas mãos dele como um barco à deriva se deixa levar pela maré. Ainda hoje, guardo essa fé, porque fé é algo que não se perde, mas se cativa e se mantém para sempre.
Os de meu povo diziam que eu estava traindo as nossas tradições, substituindo nossos deuses pelo rei dos brancos. Mas eles não entendiam que eu não substituía nada. Ao contrário, eu aumentava a minha fé, porque amar Jesus não significava voltar as costas para os orixás, mas sim amá-los ainda mais, porque, em meu coração, Jesus me dizia que eles eram forças que também nasciam do amor.
E é por isso que hoje eu reafirmo a minha fé naquele que morreu, não para redimir os nossos pecados, mas para nos ensinar que o amor há de triunfar sempre. Eu não acredito mesmo em pecado. Acho que pecado é uma ingratidão à bondade divina, porque nós não a compreendemos e acabamos agindo segundo os nossos próprios interesses, sem nos darmos conta de que Deus tudo faz por nós.
Deixo esse relato porque sou um espírito feliz, e você, uma pessoa que consegue alcançar a essência das palavras. Amo, em meu coração, você e todos aqueles que convivem com você, e sou grata a Deus, a Jesus e ao filho que dirige aquela casa, porque sem ele teria sido muito mais difícil você compreender o seu destino e escolher o caminho certo, e nós estaríamos ainda engatinhando com você.
Na sua alma, deixo um beijo amoroso,
No seu coração, um abraço de paz.
Catarina, que hoje é das Almas.
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