Na Umbanda, há um termo que corresponde diretamente a um
referencial ético, norteador, nas relações humanas vividas e experimentadas
dentro do terreiro: a ancestralidade.
Muito falamos sobre a ancestralidade no que se refere às
origens histórico-culturais que serviram como base, ao longo do desenvolvimento
da nossa sociedade, para o surgimento da Umbanda, tornando-a um fenômeno
religioso autenticamente brasileiro. Falamos das etnias que serviram de tronco
para a nossa identidade cultural, quais sejam os indígenas brasileiros, os
negros africanos e os europeus.
Sabemos que a Umbanda herda da miscigenação e do amálgama
de determinados aspectos das práticas religiosas de cada uma dessas matrizes
formadoras o conteúdo que irá constituir seu imaginário, seus símbolos
religiosos, sua cosmovisão e sua maneira de relacionar-se com a sociedade como
um todo.
Mas, nossa idéia aqui é a de tratarmos, não do aspecto
sócio-cultural da Umbanda, mas sim da inter-relação humana que vige dentro do
templo religioso umbandista lastreado pelo princípio da ancestralidade.
Toda Casa de Umbanda tem um iniciador. Alguém, homem ou
mulher, escolhido pelos Orixás, Guias e Protetores, que passa a carregar uma
"missão" que é a de servir-lhes de intermediário, para que possam ser
manifestadas as individualidades do mundo espiritual, a Aruanda, com o objetivo
de trazerem esclarecimento e, principalmente, auxílio e conforto aos
necessitados e aflitos.
Imaginando-nos há décadas atrás, sem ir muito longe,
podíamos ver uma sociedade em que o desconhecimento a respeito dos fenômenos
mediúnicos e espirituais era muito grande. A religião dominante, como ainda o
é, o catolicismo, não comporta, pelo menos para a massa leiga, uma orientação
aberta e de compreensão para com esse tipo de manifestação que é tão presente
em nosso meio social. O transe, a manifestação mediúnica, eram sempre vistos
como sendo um traço de loucura ou de possessão demoníaca, ou seja, como algo
doentio.
Lembremos dos fundadores de nossos templos, nesse passado,
em que a maioria deles nascia em meio a uma família humilde e ignorante (no
sentido exato da palavra, desconhecedora) a respeito da sua condição de
médiuns. Imaginemos o quanto essas manifestações trouxeram de angústia e de
sofrimento para eles, por verem-se no meio de uma sociedade que não os
compreendia e os via como doentes ou, pior, assediados pelo demônio.
São essas pessoas, em meio a tais adversidades, que vão
conduzir as suas vidas aceitando a condição de compromisso para com o mundo
espiritual, por meio de seus mentores e demais espíritos trabalhadores que o
acompanham, servindo como pontes entre a realidade da Aruanda Maior e a
nossa vida terrena. Tudo isso para que o objetivo de ajuda mútua, envolvendo os
habitantes dos dois "lados" da vida, possa se concretizar. Assumem as
suas "missões", iniciam-se na prática mediunista de Umbanda, aceitam
o seu caminho, cheio de flores e de espinhos, como seareiros das Leis de
Umbanda e, com o passar do tempo e apesar de tantas vicissitudes, prosseguem e
fundam suas tendas, terreiros, choupanas, centros, templos...
Enfim, são individualidades espirituais que se encarnam
neste mundo trazendo compromissos e assumindo responsabilidades profundas, na
condução de comunidades inteiras, zelando, junto de seus mentores, pelo
andamento e pelo progresso interior de tantos quantos façam parte do grupamento
de seguidores e filhos-de-santo de seus templos. Tornam-se referências
ético-morais, mesmo sem o perceber, destas comunidades.
Assim, surgem os Templos de Umbanda que se espalham por
todo o nosso país. Aqueles que estão estruturados por um trabalho sólido de
atendimento e acolhimento das pessoas que o buscam, com o tempo, constróem em
torno de si, uma comunidade fiel que o segue e apóia, tornando-se devota dos
Orixás que são cultuados nestas Casas, bem como das entidades espirituais que "baixam"
nesses terreiros, trazendo esperança, conforto e caridade para todos os
filhos-de-fé.
O grupo de médiuns, a corrente mediúnica, que vai
constituindo a força de trabalho destas casas, é formado por indivíduos com
histórias e momentos diversos, conforme a realidade vivenciada por cada um. O
processo de inter-relação entre as pessoas é enriquecido pelo diálogo, uma vez
que a característica fundamental da Umbanda é a chamada "oralitura",
ou seja, a transmissão oral do conhecimento e da história espiritual pertinente
a cada casa de Umbanda é feita primordialmente pelo diálogo, pela palavra
"falada", pela conversa com os mais velhos, pelo ensino que vem da
preleção ditada pelo dirigente de cada templo.
Ao longo da história do terreiro, são construídas memórias,
conforme as pessoas vivenciam as mais diversas formas da vida espiritual dentro
do templo umbandista, seja no dia-a-dia das giras, nas ocasiões de festa e
comemorações, nos ritos de iniciação, nos mutirões de limpeza e organização em
prol da casa.
Dessa forma, antes de entrarmos no templo de Umbanda em que
hoje nos encontramos, devemos lembrar que muitos outros já passaram por lá
antes de nós, carregando esperanças, memórias, histórias, conhecimentos,
aprendizados, felicidades, frustrações, alegrias, tristezas,
realizações...vivências profundas, enfim, tornando-as ligadas àquele ambiente
espiritual. Não são só os nossos Guias e Protetores que estão ligados às
correntes espirituais de nosso terreiro. Também nós, aos poucos, vamos nos
integrando naquela realidade espiritual e, conforme avançamos na história do
templo, nosso sentimento de fé, de respeito e de carinho, também nos tornam
parte daquele mundo de luz. Não à toa, nossos irmãos de terreiro, mais velhos,
quando desencarnam, passam também a fazer parte das correntes espirituais da
casa. E, em alguns casos, ao passar dos anos, chegam inclusive a integrar-se
como espíritos trabalhadores da casa. Isso é possível, embora dependa
muito da condição espiritual de cada um, afinal, como disse Jesus: "Porque,
onde estiver o teu coração, ali estará o teu tesouro".
Embora não seja possível fazermos uma relação direta e
proporcional entre tempo e conhecimento, pois nem sempre o fato de realizarmos
durante muito tempo alguma coisa, signifique que o estejamos fazendo da maneira
correta ou com a qualidade devida, cabe-nos lembrar aqui que, na religião de
Umbanda, o papel do mais velho, no caminho da iniciação espiritual da Umbanda é
muito importante.
Os exemplos do mais velho, a sua conduta, são diretamente observados
e tendem a ser repetidos pelo médium mais novo. São os mais velhos que
lastreiam e detém as memórias que podem ser transmitidas aos mais novos,
fazendo com que, tal qual o Mestre Nazareno o fez, partilhando os pães e os
peixes, o coração de cada seguidor também se preencha dessas recordações
felizes, assim como dos conhecimentos fundamentais para o crescimento
espiritual dos neófitos dentro do templo. Quando isso não ocorre, chega-se ao
risco de fazer com que se esmoreça a fé, com que a responsabilidade dos papéis
se dissolva, com que se perca o referencial e os valores que devem ser
cultivados e ensinados, pelo exemplo, insistimos, dentro do ambiente religioso.
Isso tudo por que o fortalecimento da fé e do significado espiritual precisa da
experiência com o outro, por meio da partilha. Esse é o princípio da Comunhão,
a qual deve existir entre os membros da corrente mediúnica, entre os
filhos-de-santo, entre os filhos-de-fé.
Portanto, segundo a nossa humilde e limitada visão, devemos
sempre lembrar que, antes de olharmos para as coisas e as pessoas que estão
inseridas no templo de Umbanda ao qual nos vinculamos, estabelecendo críticas e
exigindo mudanças, devemos sempre nos lembrar de que ali há uma história viva,
na qual cada um de nós se insere, na medida do papel e das responsabilidades
atribuídas a cada qual. Pessoas existem e existiram ali que construíram seu
espaço e sua história espiritual naquele templo, e nós devemos respeitar tudo
isso, mesmo que diante de dúvidas ou da impossibilidade de compreendermos
totalmente determinadas questões, justamente devido à nossa inexperiência...são
os passos que ainda não demos pelo caminho que outros, à nossa frente, já
caminharam.
Lembremos da Ancestralidade que originou e sustenta a
tradição de Umbanda que seguimos em nosso templo e não nos esqueçamos, em
nossas orações, dentro e fora do nosso terreiro, de pedirmos a benção e a
cobertura desses irmãos mais velhos que nos antecederam, junto de seus Guias e
Mentores de Luz, nesta etapa da jornada espiritual.
Assim, peço a benção aos mais velhos e dirijo meu
preito de respeito aos mais novos, como eu.
Saravá a todos!
Ilé Yorimá*
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