Pensando a respeito do processo de ensino-aprendizagem, na cultura umbandista, gostaria de compor algumas linhas sobre o tema.
Diferentemente de um fato que
ocorria no meio umbandista até poucas décadas atrás (até a década de 90), em
que pouquíssima coisa havia sido registrada e transmitida utilizando-se do
recurso do livro e, posteriormente, da internet, hoje, vemos uma grande proliferação
de obras literárias (acadêmicas ou não) tratando especificamente da Umbanda,
sem contar outras falando das demais religiões pertencentes à cultura
afro-brasileira, assim como uma grande diversidade de sites e blogs na
internet, nos quais também existem conteúdos e informações (embora muitas vezes
repetidos ou plagiados) a respeito deste universo religioso.
Não pretendo julgar a validade
ou a qualidade do conteúdo presente nestes livros ou na internet, pois,
naturalmente, existem aqueles de valor considerável e aqueloutros que, de fato,
não merecem nenhuma consideração, tamanha a pobreza de idéias, a quantidade de
conceitos equivocados, visões de mundo distorcidas, etc.
E nem preciso ir muito longe.
Pegando um autor famoso no meio, Rubens Saraceni, cito 4 livros de sua autoria
e de seu “preto-velho” Pai Benedito de Aruanda (que teria sido Dante
Alighieri), "Código de Umbanda", "O Livro das Energias",
"A Gênese Divina dos Orixás" e "O Código da Escrita Mágica
Simbólica" (sem contar aqueles livros tratando das histórias de Exus, como
o Guardião da Meia-Noite e outros).
Tais obras contém uma
infinidade de erros, omissões, prolixidades e falhas de informação no que se
refere:
- História das religiões: dizer que o Judaísmo é a religião mais antiga do mundo, quando qualquer pessoa que tenha feito até o ensino médio sabe, ou deveria saber, que a religião mais antiga da humanidade hoje é o Hinduísmo;
- Falhas em conceitos sobre mediunidade: 1º
o autor diz que NINGUÉM, em nenhuma religião, filosofia ou doutrina
espiritual, jamais tinha tratado do campo vibratório do médium...acho que
ele nunca leu André Luiz, que desde 1940 fala disso, sem contar Matta e
Silva, escritor Umbandista, que já desde 1959 escrevera a respeito deste
assunto. 2º ele afirma que os médiuns na Umbanda trabalham, em
determinadas linhas, incorporados com seres de natureza “extra”-humana,
como elementais e outros, pertencentes a dimensões distintas do plano
espiritual humano. Outro erro crasso, porque o mecanismo mediúnico ocorre
pela ligação mental entre seres de mesma natureza. Naturalmente, os seres
que estão envolvidos no mecanismo mediúnico podem ser mais ou menos
evoluídos uns que os outros, mas jamais pertencentes a naturezas
diferentes;
- Erros científicos clamorosos: só pra citar alguns básicos, afirmar que a partícula nêutron tem carga positiva..ou, que “a noite as plantas absorvem gás carbônico e liberam oxigênio durante o dia”, ou ainda que “nosso ar é uma combinação de vários gases no qual predomina o oxigênio”...
Tudo isso contido em obras que
se dizem de Teologia e Doutrina de Umbanda...já pensou uma pessoa que não é da
Umbanda, mas tem conhecimento, e pega esses livros pra ler? O que ela vai
pensar da nossa religião...
Estou citando esses “pequenos”
exemplos de erros deste autor, não porque eu tenha nada contra ele,
absolutamente. Somente porque ele figura entre os mais famosos no meio. Outros,
que nem são famosos então...é de chorar.
Bom, isso a parte...quero
enfatizar que o processo de ensino-aprendizagem na Umbanda está diretamente
ligado à transmissão oral (oralitura) e a experimentação
multissensorial (que não envolve somente o uso do intelecto, mas de
outras funções e percepções psíquicas). Ou seja, nesta prática religiosa, o
conhecimento é transferido na interação direta e pessoal entre Pai
(Mãe)-de-Santo e Filho-de-Santo, a qual ocorre pelos ensinos que são
ministrados durante o dia-a-dia dos trabalhos – antes, durante e após estes –,
nos ritos especiais e nas atividades específicas de iniciação (as obrigações,
preparações ou amacis, de acordo com o termo usado em cada casa) pelas quais os
adeptos passam, ao longo do seu aprendizado mediúnico.
Ter contato com os objetos e
elementos do culto. Sentir os pés descalços no chão. Ouvir o som dos cânticos e
dos instrumentos. Orar em silêncio. Rezar em comunhão com o irmão de terreiro.
Mãos dadas. Observar o multicolorido das roupas, fitas e velas. Sentir os
aromas das ervas, das defumações e das flores do ambiente. Perceber-se em
transe, tomado por uma energia fora de si-mesmo.
Tudo isso compõe um processo
de aprendizagem que envolve múltiplas sensações e percepções, ampliando a
experiência psicológica e espiritual pertinente à Umbanda. Trata-se de um
conhecimento experimental, de um saber-fazer que só pode ocorrer na prática e
na experimentação direta e interessada nas giras, nos trabalhos espirituais de
toda e qualquer natureza que se desenvolvem dentro do terreiro. Essa condição
que é dada ao filho-de-santo, a de“estar presente”, é que colabora para
a gradual construção de uma “compreensão intuitiva” a respeito
da realidade espiritual e dos sentidos profundos que estão “velados”, ocultos,
nos trabalhos espirituais.
Dessa forma, na Umbanda, a
porta para o acesso ao conhecimento espiritual está em “sentir” e
“viver” esta forma de religiosidade. Ou seja, a aprendizagem de maior
valor para essa cultura religiosa pertence ao que vem “de dentro” do
adepto e não, necessariamente, às formas externas de aquisição de conhecimento.
Ao longo dos anos, a relação subjetiva, interna e particular, com as entidades
espirituais e com o seu Mestre Espiritual (Pai/Mãe-de-Santo) implica em
revelações que vão sendo abertas para o médium a pouco e pouco.
As ferramentas para a
aquisição do Saber, na Umbanda, dentro desta perspectiva “desde de dentro” do
médium são as intuições, as descobertas interiores, as revelações, a
dedicação, o interesse pessoal e o dom (aqui entendido como a
capacidade inata do indivíduo de captar e receber orientações diretas do mundo
espiritual). Todos esses fatores remetem a compreensão de que o modo de
aprender na Umbanda está ligado a uma tradição que é vivida dentro do terreiro,
aprendida e repassada, principalmente por meio da memória e da oralidade.
Falando da oralidade, quero
dizer que a fluência do ensino é transmitido da “boca ao ouvido”.
Da boca do Chefe de Terreiro ao ouvido do(s)
médium(ns). Isso tem uma força simbólica muito grande, pois ouvir diretamente
um conhecimento transmitido por aquele que tem o papel reconhecido como o de
Mestre, vai muito além do que ler algo distante e descontextualizado daquela
tradição na qual o médium está inserido.
Entretanto, a Umbanda não marginaliza
a leitura como fonte de conhecimento. Não há uma oposição ao livro ou a
leitura. O que acontece é a acomodação da cultura literária como sendo uma
experiência de segundo plano, complementar, e não a experiência central para a
transmissão do conhecimento. Essa experiência central, quero ressaltar,
pertence ao campo da experiência pessoal e subjetiva, da transmissão oral entre
Mestre e discípulo e da memória conservada ao longo das gerações dentro do
terreiro.
Devemos compreender que os
livros cuja temática é a Umbanda, colaboram para trazer esse universo religioso
para uma dimensão menos marginalizada em nossa sociedade (pois nossa sociedade
atual valoriza mais a linguagem escrita do que outras formas de linguagem).
Podemos ver que atualmente há um interesse crescente por parte de
historiadores, antropólogos, cientistas da religião, psicólogos entre outros
pesquisadores no mundo acadêmico, em estudar a Umbanda e divulgá-la como um
fenômeno religioso válido e com uma cultura rica e saudável, ao contrário do
estigma que fora criado sobre a Umbanda, taxando-a como uma seita esdrúxula,
repleta de crendices e práticas perigosas para a saúde psiquiátrica das
pessoas.
Contudo, os livros, os blogs
(inclusive esse que você lê) e os sites tratam sempre de aspectos externos,
genéricos e superficiais da Umbanda. Eles falam daquilo que “pode ser falado”
abertamente. Por isso, o cuidado que o adepto sempre deve ter ao ler e analisar
tais obras a respeito daquilo que elas trazem e ensinam, pois muitas das vezes
os livros estão refletindo o pensamento próprio do seu autor dentro daquela
tradição que é seguida por este e que, naturalmente, não cabem dentro da
tradição que seguimos particularmente. Vale como um ponto de informação e
reflexão, mas nunca como “pedra de toque”.
Os livros (os que detém
conteúdos coerentes, é claro) também nos ajudam a entender a Umbanda como um
fenômeno religioso, compreendendo seu desenvolvimento histórico e social,
ensejando que tenhamos uma visão crítica/analítica de nossa religião,
reforçando nossa identidade cultural-religiosa e sabendo situá-la perante a
sociedade em que estamos inseridos.
Assim, enfatizo que as obras
umbandistas (e espiritualistas em geral) são um recurso valioso para o médium e
demais adeptos, mas que têm seu lugar bem definido e delineado na prática
Umbandista.
Os conhecimentos centrais e
profundos só são acessados pela experiência na prática cotidiana, no “estar
presente” e interessado no terreiro, e pela transmissão oral, de “boca a
ouvido” entre Pai(Mãe)-de-Santo e Filho-de-Santo...entre Mestre e discípulo.
Saravá a todos!
Ilé Yorimá*
Nenhum comentário:
Postar um comentário